24 maio, 2016


               

                                                                         






                  O CAMINHO DO ARCO

- Tetsuya.
O rapaz olhou espantado o estrangeiro.
- Ninguém nesta cidade viu Tetsuy a segurando um arco – respondeu. – Todos
sabemos que ele trabalha em carpintaria.
- Pode ser que tenha desistido, que tenha se acovardado, isso não me interessa
– insistiu o estrangeiro. – Mas não pode ser considerado o melhor arqueiro do
país, se já abandonou sua arte. E por isso viajei tantos dias: para desafiá-lo e
colocar um ponto final em uma fama que já não merece.
O rapaz viu que não adiantava ficar discutindo: era melhor levá-lo até o
carpinteiro, para ver com seus próprios olhos que ele estava enganado.
Tetsuya estava trabalhando na oficina situada nos fundos de sua casa. Virouse para ver quem chegava, e seu sorriso foi interrompido no meio. Os olhos se
fixaram na longa sacola que o estrangeiro carregava consigo.
- É exatamente o que você está pensando – disse o recém-chegado. – Não
vim aqui para humilhar nem provocar o homem que virou uma lenda. Apenas
gostaria de provar que, com todos os meus anos de prática, consegui chegar à
perfeição.
Tetusya fez menção de retornar ao seu trabalho: estava terminando de
colocar os pés de uma mesa.
- Um homem que serviu de exemplo para toda uma geração, não pode
desaparecer como o senhor desapareceu – continuou o estrangeiro. – Segui seus
ensinamentos, procurei respeitar o caminho do arco, e mereço que me veja
atirar. Se fizer isso, irei embora e não direi a ninguém onde se encontra o maior
de todos os mestres.
O estrangeiro tirou de sua bagagem um arco longo, feito de bambu
envernizado, com o punho situado um pouco abaixo do centro. Fez uma
reverência para Tetsuya, caminhou até o jardim, e fez outra reverência para um
lu
gar determinado. Em seguida, tirou uma flecha ornada com plumas de águia,
abriu as pernas de modo a ter uma base sólida para atirar, com uma das mãos
trouxe o arco até diante de seu rosto, com a outra colocou a flecha.
O rapaz olhava com um misto de alegria e espanto. E Tetsuya tinha
interrompido seu trabalho, olhando o estrangeiro com curiosidade.
O homem trouxe o arco – já com a flecha presa à corda – até o centro do seu

peito. Levantou-o acima da cabeça, e à medida que abaixava as mãos, começou
a abri-lo.
Quando chegou com a flecha a altura do seu rosto, o arco já estava
completamente estendido. Por um momento que pareceu durar uma eternidade,
arqueiro e arco permaneceram imóveis. O rapaz olhava para o local onde a
flecha estava apontando, mas não via nada.
De repente, a mão da corda se abriu, o braço foi empurrado para trás, o arco
descreveu um giro gracioso na outra mão, e a flecha desapareceu de vista, para
tornar a aparecer ao longe.
- Vá pegá-la – disse Tetsuy a.
O rapaz voltou com a flecha: ela havia atravessado uma cereja que se
encontrava no chão, a quarenta metros de distância.
Tetsuya fez uma reverência para o arqueiro, foi até um canto de sua
carpintaria, e pegou uma espécie de madeira fina, com curvas delicadas, envolta
em uma longa tira de couro. Desenrolou a tira sem a menor pressa, e apareceu
um arco semelhante ao do estrangeiro – com a diferença que parecia ter sido
bastante mais usado.
- Não tenho flechas, e precisarei de uma das suas. Farei o que me pede, mas
terá que manter a promessa que fez: jamais irá revelar o nome da aldeia onde
vivo.
“Se alguém perguntar por mim, diga que foi até o final do mundo tentando
encontrar-me, até descobrir que eu tinha sido picado por uma cobra, e morrido
dois dias depois. “
O estrangeiro assentiu com a cabeça, e estendeu uma de suas flechas.
Apoiando uma das extremidades do longo arco de bambu na parede, e
fazendo um considerável esforço, Tetsuya colocou a corda. Em seguida, sem
dizer nada, saiu em direção às montanhas.
O estrangeiro e o rapaz o acompanharam. Caminharam por uma hora, até
chegar a uma fenda entre duas rochas, onde corria um rio caudaloso: o lugar só
podia ser cruzado através de uma ponte de corda apodrecida, quase
despencando.
Com toda calma, Tetsuya foi até o meio da ponte – que balançava
perigosamente - fez uma reverência para algo do outro lado, armou o arco da
mesma maneira que o estrangeiro havia feito, levantou-o, trouxe-o de volta ao
peito, e disparou.
O rapaz e o estrangeiro viram que um pêssego maduro, que se encontrava à
vinte metros do local, havia sido transpassado pela flecha.

- Você atingiu uma cereja, eu atingi um pêssego – disse Tetsuya, voltando
para a segurança da margem. - A cereja é menor.
“Você atingiu seu alvo a quarenta metros, e o meu estava à metade desta
distância. Portanto, você tem condições de repetir o que fiz. Venha até aqui o
meio desta ponte, e faça a mesma coisa.”
Aterrorizado, o estrangeiro caminhou até o meio da ponte semi-apodrecida,
mantendo os olhos fixos no despenhadeiro debaixo dos seus pés. Fez os mesmos
gestos rituais, disparou em direção à arvore de pêssegos, mas a flecha passou
muito longe.
Ao voltar para a margem, seu rosto estava pálido.
- Você tem habilidade, tem dignidade, e tem postura – disse Tetsuya. –
Conhece bem a técnica e domina o instrumento, mas não domina sua mente.
Sabe atirar quando todas as circunstâncias são favoráveis, mas se estiver em um
terreno perigoso, não consegue atingir o alvo. Entretanto, nem sempre o arqueiro
pode escolher seu campo de batalha, de modo que recomece seu treinamento, e
esteja preparado para situações desfavoráveis.
“Continue no caminho do arco, pois ele é o percurso de uma vida. Mas
aprenda que um tiro correto e certeiro é muito diferente de um tiro com a paz na
alma. “
O estrangeiro mais uma vez fez uma longa reverência, colocou seu arco e
suas flechas na longa sacola que carregava ao ombro, e partiu.
No caminho de volta, o rapaz estava exultante.
- Você o humilhou, Tetsuya! Você deve ser mesmo o melhor de todos!
- Não deveríamos julgar pessoas sem antes aprender a ouvi-las e respeitá-las.
O estrangeiro era um homem bom: não me humilhou, nem tentou provar que era
melhor, embora desse a impressão de fazer isso. Queria mostrar sua arte, e vê-la
reconhecida, mesmo que desse a impressão de estar me desafiando.
“Além do mais, faz parte do caminho do arco enfrentar de vez em quando
algumas provas inesperadas, e foi justamente o que o estrangeiro me permitiu
fazer hoje”.
- Ele disse que você era o melhor de todos, e eu nem sabia que você era um
mestre no tiro com arco. Se é assim, por que trabalha em uma carpintaria?
- Porque o caminho do arco serve para tudo, e meu sonho era trabalhar com
madeira. Além do mais, um arqueiro que segue este caminho não precisa de
arco, nem de flecha, nem de alvo.
- Nada de interessante acontece nesta aldeia, e de repente eu me dei conta

que estou diante de um mestre em uma arte que ninguém se interessa mais –
disse o rapaz, com os olhos brilhando. – O que é o caminho do arco? Você pode
me ensinar?
- Ensinar não é difícil. Posso fazer isso em menos de uma hora, enquanto
caminhamos de volta ao vilarejo. O difícil é praticar todos os dias, até conseguir
a precisão necessária.
Os olhos do rapaz pareciam implorar uma resposta positiva. Tetsuy a andou
em silêncio por quase quinze minutos, e quando tornou a falar, sua voz parecia
mais jovem:
- Hoje estou contente: honrei o homem que, há muitos anos atrás, salvou
minha vida. Por causa disso, lhe darei todas as regras necessárias, mas não posso
fazer nada além disso: se você entender o que estou dizendo, poderá usar estes
ensinamentos para o que desejar.
“Há poucos minutos, você me chamou de mestre. O que é um mestre? Pois
eu lhe respondo: não é aquele que ensina algo, mas aquele que inspira o aluno a
dar o melhor de si para descobrir um conhecimento que ele já tem em sua alma.

E enquanto desciam a montanha, Tetsuy a explicou o caminho do arco.

OS ALIADOSO arqueiro que não compartilha com outros a alegria do arco e da flecha,
jamais irá conhecer suas próprias qualidades e defeitos.
Portanto, antes de começar qualquer coisa, busque aliados – gente que se
interessa pelo você está fazendo.
Não digo: “busque outros arqueiros.” Digo: encontre pessoas com diferentes
habilidades, porque o caminho do arco não é diferente de qualquer caminho
seguido com entusiasmo.
Seus aliados não serão necessariamente aquelas pessoas que todos olham, se
deslumbram, e afirmam: “ não existe ninguém melhor.” Muito pelo contrário: é
gente que não tem medo de errar, e portanto erra. Por causa disso, nem sempre
seu trabalho é reconhecido. Mas é este tipo de pessoa que transforma o mundo, e
depois de muitos erros consegue acertar algo que que fará a diferença completa
na sua comunidade.
São pessoas que não podem ficar esperando que as coisas aconteçam, para
depois poderem decidir qual a melhor atitude a tomar: elas decidem à medida
que agem, mesmo sabendo que isso pode ser muito arriscado.
Conviver com estas pessoas é importante para um arqueiro, porque ele
precisa entender que, antes de colocar-se diante do alvo, deve ser livre o bastante
para mudar de direção no momento em que traz a flecha para diante do seu
peito. Quando ele abre sua mão e solta a corda, , deve dizer para si mesmo: “
enquanto abria o arco, percorri um longo caminho. Agora solto esta flecha com a
consciência de que arrisquei o bastante, e dei o melhor de mim.“
Os melhores aliados são aqueles que não pensam como os outros. Por isso, ao
buscar companheiros para dividir com você o entusiasmo do tiro, acredite na sua
intuição, e não ligue para os comentários alheios. As pessoas sempre julgam os
outros tendo como modelo suas própria limitações – e às vezes a opinião da
comunidade é cheia de preconceitos e medos.
Junte-se a todos que experimentam, arriscam, caem, se machucam, e
tornam a arriscar. Afaste-se daqueles que afirmam verdades, criticam os que
não pensam como eles, jamais deram um passo sem ter certeza de que seriam
respeitados por isso, e preferem ter certezas do que ter dúvidas..
Junte-se aos que se expõem e não temem ser vulneráveis: esses entendem
que as pessoas só podem melhorar quando olham o que seu próximo está

fazendo, não para julgá-lo, mas para admirá-lo por sua dedicação e coragem.
Talvez você pense que atirar com o arco não pode interessar a um padeiro ou
a um agricultor, mas eu lhe digo: eles colocarão o que viram naquilo que estão
fazendo. Você também fará o mesmo: aprenderá com o bom padeiro como usar
usar as mãos, e como saber a exata mistura dos ingredientes. Aprenderá com o
agricultor a ter paciência, trabalhar duro, respeitar as estações, e não blasfemar
contra as tempestades – porque isso seria uma perda de tempo.
Junte-se aos que são flexíveis como a madeira do seu arco, e entendem os
sinais do caminho. São pessoas que não hesitam em mudar de curso quando
descobrem uma barreira intransponível, ou quando vislumbram uma
oportunidade melhor. Essas é a qualidade da água: contornar rochas, adaptar-se
ao curso do rio, às vezes transformar-se em lago até que a depressão esteja cheia
e possa continuar seu caminho, porque a água não esquece que seu destino é o
mar, e mais cedo ou mais tarde deverá chegar até ele.
Junte-se aos que jamais disseram: “acabou, preciso parar por aqui.” Porque
assim como o inverno é seguido pela primavera, nada pode acabar: depois de
atingir seu objetivo é necessário recomeçar de novo, sempre usando tudo que
aprendeu no caminho.
Junte-se aos que cantam, contam histórias, desfrutam a vida, e têm alegria
nos olhos. Porque a alegria é contagiosa, e sempre consegue impedir que as
pessoas se deixem paralisar pela depressão, pela solidão, e pelas dificuldades.
Junte-se à todos que fazem seu trabalho com entusiasmo. Mas para que você
possa ser útil a eles como eles são úteis a você, é preciso saber quais são as suas
ferramentas, e como poderá aperfeiçoar suas habilidades.
Portanto, é chegada a hora de conhecer seu arco, sua flecha, seu alvo, e seu
caminho.

O ARCOO arco é a vida: dele vem toda a energia.
A flecha irá partir um dia.
O alvo está longe.
Mas o arco permanecerá sempre com você, e é preciso saber cuidá-lo.
Precisa de períodos de inação – um arco que sempre está armado, em estado
de tensão, perde sua potência. Portanto, deixe-o repousar, recuperar sua firmeza:
assim, quando você esticar a corda, ele estará contente e com sua força intacta.
O arco não tem consciência: ele é um prolongamento da mão e do desejo do
arqueiro. Serve para matar ou para meditar. Portanto, seja sempre claro em suas
intenções.
Um arco tem flexibilidade, mas também tem um limite. Um esforço além da
sua capacidade irá quebrá-lo, ou deixar exausta a mão que o segura. Portanto,
procure estar em harmonia com o seu instrumento, e não exigir mais do que ele
pode lhe dar.
Um arco está repousando ou estendido na mão do arqueiro: mas a mão é
apenas o lugar onde todos os músculos do corpo, todas as intenções daquele que
atira, todo o esforço para o tiro está concentrado. Portanto, para manter com
elegância o arco aberto, faça com que cada parte dê apenas o necessário, e não
disperse suas energias. Assim, você poderá disparar muitas flechas sem se
cansar.
Para entender seu arco, ele precisa passar a fazer parte do seu braço, e ser
uma extensão do seu pensamento.

A FLECHAA flecha é o intento.
É o que une a força do arco com o centro do alvo.
O intento tem que ser cristalino, reto, bem equilibrado.
Uma vez que ela parte, não voltará, então é melhor interromper um tiro –
porque os movimentos que o levaram até ele não estavam precisos e corretos –
do que agir de qualquer maneira, só porque o arco já estava retesado e o alvo
estava esperando.
Mas jamais deixe de soltar a flecha se a única coisa que o paralisa é o medo
de errar. Se fizer os movimentos corretos, abra sua mão e solte a corda. Mesmo
que ela não atinja o alvo, você saberá corrigir sua pontaria da próxima vez.
Se não arriscar, jamais saberá quais as mudanças que eram necessárias. .
Cada flecha deixa em seu coração uma lembrança – e é a soma dessas
lembranças que o fará disparar cada vez melhor.

O ALVOO alvo é o objetivo a ser alcançado.
Foi escolhido pelo arqueiro, mas está distante, e não podemos jamais culpá-lo
quando não é atingido. Nisso reside a beleza do caminho do arco: você não pode
jamais desculpar-se, dizendo que o adversário era mais forte.
Foi você que escolheu o seu alvo, e é responsável por ele.
O alvo pode ser maior, menor, estar à direita ou à esquerda, mas você tem
sempre que colocar-se diante dele, respeitá-lo, e fazer com que ele se aproxime
mentalmente. Só quando ele estiver na ponta de sua flecha, é que você deve
soltar a corda.
Se você olhar o alvo como inimigo, poderá até mesmo acertar o seu tiro, mas
não conseguirá melhorar nada em você mesmo. Passará sua vida tentando
colocar apenas uma flecha no centro de uma coisa de papel ou madeira, o que é
absolutamente inútil. E quando estiver com outras pessoas, viverá reclamando
que não faz nada de interessante.
Por isso, você precisa escolher seu alvo, dar o melhor de si para atingi-lo, e
sempre olhá-lo com respeito e dignidade: precisa saber o que o que ele significa,
e quanto custou do seu esforço, do seu treinamento, da sua intuição.
Ao olhar o alvo, não se concentre apenas nele, mas em tudo que acontece ao
seu redor: porque a flecha, ao ser disparada, irá encontrar-se com fatores que
você não conta, como o vento, o peso, a distância.
Você tem que entender o alvo. Precisa perguntar constantemente: “se eu sou
o alvo, onde estou? Como gostaria de ser atingido, de modo a dar ao arqueiro a
honra que ele merece?”
Porque um alvo só existe na medida em que o arqueiro existe. O que justifica
a sua existência é o desejo do arqueiro de atingi-lo - ou ele seria uma coisa
morta, um pedaço de papel ou madeira, em que ninguém prestaria atenção.
Assim, da mesma maneira que a flecha busca o alvo, o alvo também busca a
flecha, porque é ela que dá sentido à sua existência: já não é mais o papel, mas o
centro do mundo de um arqueiro.

A POSTURAUma vez entendendo o arco, a flecha, e o alvo, é preciso ter serenidade e
elegância para aprender a prática do tiro.
A serenidade vem do coração. Embora muitas vezes torturado por
pensamentos de insegurança, ele sabe que - através da postura correta – irá
conseguir o melhor de si.
A elegância não é uma coisa superficial, mas a maneira que o homem
encontrou para honrar a vida e o seu trabalho. Por isso, quando às vezes você
sentir que a postura o está incomodando, não pense que ela é falsa ou artificial:
ela é verdadeira porque é difícil. Ela faz com que o alvo se sinta honrado pela
dignidade do arqueiro.
A elegância não é a postura mais confortável, mas a postura mais adequada
para que o tiro seja perfeito.
A elegância é atingida quando todo o supérfluo é descartado, e o arqueiro
descobre a simplicidade e a concentração: quanto mais simples e mais sóbria a
postura, mais bela ela será.
A neve é bonita porque tem apenas uma cor, o mar é bonito porque parece
uma superfície plana – mas tanto o mar como a neve são profundos e conhecem
suas qualidades.

COMO SEGURAR A FLECHASegurar a flecha é estar em contato com a sua intenção.
É preciso olhar todo seu comprimento, ver se as plumas que guiam seu voo
estão bem colocadas, verificar a ponta, ter certeza de que ela está afiada.
Certificar-se de que está reta, não foi curvada ou danificada por um tiro anterior.
A flecha, como sua simplicidade e leveza, pode parecer frágil – mas a força
do arqueiro faz com que ela consiga carregar para longe a energia de seu corpo
e de sua mente. Conta a lenda que uma simples flecha já foi capaz de afundar
um navio, porque o homem que a atirou sabia onde estava a parte mais fraca da
madeira, e assim abriu um buraco que fez com que a água penetrasse sem ruído
no porão, destruindo a ameaça dos invasores de sua aldeia.
A flecha é a intenção que deixa a mão do arqueiro, e parte em direção ao
alvo – portanto, ela é livre em seu voo, e irá seguir o caminho que lhe foi
destinado no momento do tiro.
Será tocada pelo vento e pela gravidade, mas isso é parte do seu percurso:
uma folha não deixa de ser folha só porque uma tempestade a arrancou da
árvore.
Assim é a intenção do homem: perfeita, reta, afiada, firme, precisa.
Ninguém consegue detê-la enquanto cruza o espaço que a separa do seu destino.

COMO SEGURAR O ARCOTenha calma e respire profundamente.
Todos os movimentos estão sendo notados pelos aliados, que o ajudarão no
que for necessário.
Mas não esqueça que o adversário também está observando, e conhece a
diferença entre a mão firme e a mão trêmula: portanto, se estiver tenso, respire
fundo, porque isso o ajudará a concentrar-se em todas as etapas do tiro.
No momento em que você segura seu arco e o coloca – com elegância –
diante do corpo, procure rever mentalmente cada etapa que o levou a preparar o
disparo. Mas faça isso sem tensão, porque é impossível ter todas as regras na
cabeça – e com o espírito tranquilo, a cada etapa revista irá se dar conta dos
momentos mais difíceis, e de como os superou.
Isso lhe dará confiança, e sua mão não tremerá mais.

COMO ESTENDER A CORDAO arco é um instrumento de música, e é na corda que o seu som se
manifesta.
A corda é grande, mas a flecha a toca apenas em um pequeno ponto, e é
neste ponto que toda a sabedoria e experiência do arqueiro deve estar
concentrada.
Se ele inclinar-se um pouco para a direita, ou um pouco para a esquerda, se
este ponto estiver acima ou abaixo da linha de tiro, o objetivo jamais será
alcançado.
Portanto, ao estender a corda, seja como o músico que toca seu instrumento.
Na música, o tempo é mais importante que o espaço: um bando de notas
colocadas em linha não quer dizer nada, mas aquele que lê o que ali está escrito
consegue transformar essa linha em sons e compassos.
Assim como o arqueiro justifica a existência do alvo, a flecha justifica a
existência do arco: você pode lançar uma flecha com a mão, mas um arco sem
flecha não tem qualquer utilidade.
Portanto, quando abrir os braços, não pense que você está esticando o arco.
Pense que a flecha é o centro, imóvel, e você está fazendo com que o arco e a
corda se aproximem de suas extremidades, tocando-a com cuidado, pedindo
para que coopere com você.

COMO OLHAR O ALVOMuitos arqueiros se queixam que, apesar de praticarem por anos a arte do
tiro, ainda sentem o coração disparar de ansiedade, a mão tremer, a pontaria
falhar. Eles precisam entender que um arco ou uma flecha não podem mudar
nada – mas a arte do tiro faz com que nossos erros sejam mais evidentes.
No dia em que você estiver sem amor pela vida, seu tiro será confuso,
complicado. Verá que está sem força suficiente para esticar ao máximo a corda,
que não consegue fazer o arco curvar-se como deve.
E ao ver que seu tiro é confuso naquela manhã, vai tentar descobrir o que
provocou tamanha imprecisão: isso fará com que depare com um problema que
o incomoda, mas que até então encontrava-se oculto.
O contrário também acontece: seu tiro é seguro, a corda soa como o
instrumento musical, os pássaros cantam ao redor. Então você percebe que está
dando o melhor de si mesmo.
Entretanto, não se deixe levar pelos tiros da manhã, sejam eles precisos ou
inseguros. Ainda existem muitos outros dias pela frente, e cada flecha é uma vida
em si.
Aproveite os maus momentos para descobrir o que o faz tremer. Aproveite os
bons momentos para encontrar seu caminho até a paz interior.
Mas não pare por temor nem por alegria: o caminho do arco é um caminho
sem fim.

O MOMENTO DE DISPARARExistem dois tipos de tiro.
O primeiro é aquele que é dado com precisão, mas sem alma. Neste caso,
embora o arqueiro tenha um grande domínio da técnica, ele concentrou-se
exclusivamente no alvo – e por causa disso não evoluiu, tornou-se repetitivo, não
conseguiu crescer, e um dia irá deixar o caminho do arco, porque acha que tudo
transformou-se em rotina.
O segundo tiro é o que é dado com a alma. Quando a intenção do arqueiro se
transforma no voo da flecha, sua mão abre no momento certo, o som da corda
faz os pássaros cantarem, e o gesto de atirar alguma coisa à distancia provoca –
paradoxalmente – um retorno e um encontro consigo mesmo.
Você sabe o esforço que custou para abrir o arco, respirar direito, concentrarse em seu objetivo, ter clara sua intenção, manter a elegância da postura,
respeitar o alvo.
Mas precisa também compreender que nada neste mundo fica conosco por
muito tempo: em um dado momento sua mão terá que se abrir, e deixar que sua
intenção siga seu destino.
Portanto, a flecha tem que partir, por mais que você ame todos os passos que
o levaram até a postura elegante e à intenção correta, e por mais que você
admire suas plumas, sua ponta, sua forma.
Mas ela não pode sair antes do arqueiro estar pronto para o disparo, porque
seu voo seria pequeno. Ela não pode sair depois de se ter atingido a postura e a
concentração exatas, porque o corpo não resistiria ao esforço e a mão começaria
a tremer.
Ela tem que partir no momento em que o arco, o arqueiro, e o alvo se
encontram no mesmo ponto do universo: isso é chamado de inspiração.

A REPETIÇÃOO gesto é a encarnação do verbo: ou seja, uma ação é um pensamento que se
manifesta.
Um pequeno gesto nos denuncia, de modo que temos que aperfeiçoar tudo,
pensar nos detalhes, aprender a técnica de tal maneira que ela se torne intuitiva.
Intuição nada tem a ver com rotina, mas com um estado de espírito que está
além da técnica.
Assim, depois de muito praticar, já não pensamos em todos os movimentos
necessários: eles passam a fazer parte de nossa própria existência. Mas para isso,
é preciso treinar, repetir.
E como se não bastasse, é preciso repetir e treinar.
Observe um bom ferreiro trabalhando o aço. Para o olhar destreinado, ele
está repetindo as mesmas marteladas.
Mas quem conhece o caminho do arco, sabe que cada vez que ele levanta o
martelo e o faz descer, a intensidade do golpe é diferente. A mão repete o
mesmo gesto, mas à medida que se aproxima do ferro, ela compreende se deve
tocá-lo com mais dureza ou mais suavidade.
Assim é com a repetição: embora pareça a mesma coisa, ela é sempre
distinta.
Observe o moinho. Para quem olha suas pás apenas uma vez, ele parece
girar com a mesma velocidade, repetindo sempre o mesmo movimento.
Mas aquele que conhece os moinhos sabe que eles estão condicionados ao
vento, e mudam de direção sempre que isso é necessário.
A mão do ferreiro foi educada depois que ele repetiu milhares de vezes o
gesto de martelar. As pás do moinho são capazes de se moverem com velocidade
depois que o vento soprou muito, e fez com que suas engrenagens ficassem
polidas.
O arqueiro permite que muitas flechas passem longe do seu objetivo, porque
sabe que só irá aprender a importância do arco, da postura, da corda, e do alvo,
depois que repetir seus gestos milhares de vezes, sem medo de errar.
E os verdadeiros aliados jamais o criticarão, porque sabem que o treinamento
é necessário é a única maneira de aperfeiçoar seu instinto e seu golpe.
Até que chega o momento em que não é mais preciso pensar no que se está
fazendo. A partir daí, o arqueiro passa a ser seu arco, sua flecha, e seu alvo.

COMO OBSERVAR
O VOO DA FLECHA
Uma vez que a flecha foi disparada, já não há mais nada que o arqueiro
possa fazer, a não ser acompanhar o seu percurso em direção ao alvo. A partir
deste momento, a tensão necessária para o tiro já não tem mais razão para
existir.
Portanto, o arqueiro mantém os olhos fixos no voo da flecha, mas seu
coração repousa, e ele sorri.
A mão que soltou a corda é empurrada para trás, a mão do arco faz um
movimento de expansão, o arqueiro é forçado a abrir os braços e a enfrentar, de
peito aberto, o olhar de seus aliados e de seus adversários.
Neste momento, se treinou o bastante, se conseguiu desenvolver seu instinto,
se manteve a elegância e a concentração durante todo o processo do disparo, ele
sentirá a presença do universo, e verá que sua ação foi justa e merecida.
A técnica faz com que as duas mãos estejam prontas, que a respiração seja
precisa, que os olhos possam fixar o alvo. O instinto faz com o momento do
disparo seja perfeito.
Quem passar por perto e ver o arqueiro de braços abertos, com os olhos
acompanhando a flecha, irá achar que está parado. Mas os aliados sabem que a
mente de quem fez o disparo mudou de dimensão, está agora em contato com
todo o universo: ela continua trabalhando, aprendendo tudo o que aquele disparo
trouxe de positivo, corrigindo os eventuais erros, aceitando suas qualidades,
esperando para ver como o alvo reage ao ser atingido.
Quando o arqueiro estica a corda, pode ver o mundo inteiro dentro do seu
arco. Quando acompanha o voo da flecha, este mundo se aproxima dele, o
acaricia, e faz com que tenha a sensação perfeita do dever cumprido.
Cada flecha voa de maneira diferente. Atire mil flechas, cada uma irá lhe
mostrar um percurso distinto: esse é o caminho do arco.

O ARQUEIRO SEM ARCO,
SEM FLECHA, SEM ALVO
O arqueiro aprende quando esquece as regras do caminho do arco, e passa a
agir baseado apenas no seu instinto. Entretanto, para esquecer as regras, é preciso
saber respeitá-las e conhecê-las.
Quando ele atinge este estado, já não precisa dos instrumentos que o fizeram
aprender. Já não precisa do arco, nem das flechas, nem do alvo – porque o
caminho é mais importante que aquilo que o levou a caminhar.
Da mesma maneira, o aluno que está aprendendo a ler chega ao momento
em que se liberta das letras isoladas e passa a criar palavras com elas.
Entretanto, se as palavras estivessem todas unidas, elas não fariam sentido, ou
complicariam muito o seu entendimento: é necessário que existam espaços entre
as palavras.
É necessário que, entre uma ação e a próxima, o arqueiro relembre de tudo
que fez, converse com seus aliados, descanse e fique contente com o fato de
estar vivo.
O caminho do arco é o caminho da alegria e do entusiasmo, da perfeição e
do erro, da técnica e do instinto.
Mas você só irá aprendê-lo à medida que for atirando suas flechas.
Quando Tetsuy a parou de falar, já estavam na porta da carpintaria.
- Obrigado pela companhia – disse ao rapaz.
Mas este não se moveu.
- Como posso saber se estou agindo certo? Como terei certeza de que tenho o
olhar concentrado, a postura elegante, o arco seguro de maneira correta?
- Mentalize a ideia de um mestre perfeito sempre ao seu lado, e faça tudo
para reverenciá-lo e honrar seus ensinamentos. Este mestre, que muitos chamam
de Deus, outros chamam de “a coisa”, outros chamam de talento, está sempre ali
nos olhando. Ele merece o melhor.
“Lembre-se também dos seus aliados: você tem que apoiá-los, porque eles
lhe ajudarão nos momentos em que estará precisando. Procure desenvolver o
dom da bondade: este dom lhe permite estar sempre em paz com seu coração.
Mas sobretudo não esqueça: o que lhe falei são talvez palavras inspiradas, mas só
terão sentido se você as experimentar.
Tetsuya estendeu a mão para despedir-se, mas o rapaz pediu:
- Só mais uma coisa: como foi que aprendeu a atirar?

Tetsuya refletiu um pouco: valia a pena contar? Mas como aquele tinha sido
um dia especial, terminou abrindo a porta de sua oficina.
- Vou preparar um chá. E vou contar a história – mas você terá que prometer
a mesma coisa que eu pedi que o estrangeiro me prometesse: jamais comentar
com ninguém sobre minha habilidade.
Entrou, acendeu a luz, tornou a envolver seu arco com a longa tira de couro, e
colocou-o em um lugar discreto: se alguém o achasse por acaso, iria pensar que
era apenas um pedaço de bambu retorcido. Foi até a cozinha, preparou o chá,
sentou-se com o rapaz, e começou sua história.
- Eu trabalhava para um grande senhor das redondezas: era encarregado de
cuidar dos seus estábulos. Mas como o senhor viajava sempre, e meu tempo livre
era enorme, resolvi me dedicar ao que considerava a verdadeira razão de viver:
bebida e mulheres.
“Um belo dia, depois de várias noites em claro, senti uma vertigem e caí no
meio do campo. Achei que ia morrer, e entreguei-me. Mas um homem que
jamais tinha visto passou pela estrada, amparou-me, levou-me até sua casa – em
um lugar muito distante daqui – e cuidou de minha saúde durante meses seguidos.
Enquanto repousava, eu o via todas as manhãs ir para o campo com seu arco e
suas flechas.
“Quando me senti recuperado, pedi que me ensinasse a arte do arco – era
muito mais interessante do que cuidar de cavalos. Ele me disse, entretanto, que
minha morte tinha se aproximado muito, e agora não podia fazê-la recuar: ela
estava a dois passos de mim, pois eu já havia causado muito dano a meu corpo
físico.
“ Se eu quisesse aprender, era apenas para que minha morte não me tocasse.
Um homem de um país distante, do outro lado do oceano, havia lhe ensinado que
era possível desviar por algum tempo o caminho até o precipício da morte. Mas
no meu caso , pelo resto de meus dias, eu precisava ter consciência de que estava
caminhando à beira desse abismo, e podia cair nele a qualquer momento.
“Ensinou-me então o caminho do arco. Apresentou-me aos seus aliados,
obrigou-me a participar de competições, e logo minha fama se espalhou por todo
o país. Quando viu que eu já aprendera o suficiente, retirou minhas flechas, meu
alvo, deixando apenas o arco como lembrança. Disse que eu usasse todos aqueles
ensinamentos para fazer algo que realmente me enchesse de entusiasmo.
“Eu comentei que a coisa que mais gostava era a carpintaria. Ele me
abençoou, pediu que eu partisse e me dedicasse ao que gostava de fazer, antes
que minha fama como arqueiro terminasse por me destruir, ou me levasse de

volta à antiga vida.
“Desde então, travo todos os segundos uma luta contra meus vícios e minha
autopiedade. Preciso estar concentrado, manter a calma, fazer com amor o
trabalho que escolhi, e jamais ter apego ao momento presente. Porque a morte
continua ainda muito próxima, o abismo está do lado, e eu caminho por sua
borda.”
Tetsuy a não disse que a morte está sempre perto de todos os seres vivos: o
rapaz era ainda muito jovem, e não precisava ficar pensando nisso. Tetsuya
tampouco disse que cada etapa do caminho do arco estava presente em qualquer
atividade humana.
Apenas abençoou o rapaz, da mesma maneira que tinha sido abençoado há
muitos anos, e pediu que fosse embora, porque tinha sido um longo dia, e
precisava dormir.


O CAMINHO DO ARCO. PAULO COELHO